quinta-feira, 4 de novembro de 2021

Análise Crítico Reflexiva: Um Estudo de Caso

 

Zito, D. M. (2009). A Escuta Psicanalítica do Paciente Hospitalizado e da Equipe de Saúde: Estudo de Caso. Psicologia Hospitalar; 7(1); 23-43.

 

 


O presente artigo trata de um caso clinico de uma paciente, internada em um hospital devido à Doença de Crohn. Doença de Crohn é uma doença crônica tratável, mas não curável, que pode se retardada por medicamentos, exige cuidados e por vezes cirurgia, e exames periódicos para prevenir um possível câncer, já que a doença aumenta os riscos de desenvolvimento deste. A paciente se recusava a aderir ao tratamento que, devido ao seu quadro, implicava em transfusão de sangue, em consequência de sua crença religiosa. Foi atendida sob uma abordagem psicanalítica. Este artigo fala da abordagem da Psicologia da Saúde em um ambiente hospitalar, ou seja, atendimento de atenção secundário, de internação, clinicalista e assistencialista. Na presente analise pretende-se discorrer sobre a abordagem psicanalítica no contexto hospitalar, sobre a adesão ao tratamento e sobre a liberdade e responsabilidade do individuo por sua vida e por suas escolhas, a partir de um viés humanista existencial.

Zito (2009) expressa que o indivíduo acaba por perder sua dignidade no momento em que a doença o torna objeto de intervenção, fragilizando-o e afastando-o de laços afetivos sociais. O trabalho do psicólogo da saúde dificilmente é compreendido. Parte do papel do psicólogo da saúde está em auxiliar na comunicação e compreensão do paciente, da família e da equipe de saúde. Podendo também identificar as reações mal-adaptativas devido ao estresse da hospitalização e do momento que o paciente está vivendo, auxiliando a equipe responsável na condução das situações difíceis e em relação ao equilíbrio emocional. A hospitalização gera angustia e conflitos psíquicos nos pacientes. O que pode fazer com que o paciente negue seu diagnóstico e recue do tratamento, que pode parecer invasivo e ameaçador, mesmo visando à melhora.

O tratamento psicanalítico é feito pela fala, o que permite ultrapassar as barreiras do consciente e compreender o verdadeiro discurso do indivíduo. A psicanálise é fundamentada nas técnicas de associação livre e transferência, aonde se escuta o sujeito, não sua patologia, conservando sua singularidade. Figueiredo (2009) define que a psicanálise clássica por si só não é adequada ao ambiente hospitalar, sendo um ambiente intrusivo, atemporal e desconfortável. Entretanto, ainda que não sejam boas condições para a prática da psicanálise, é importante oferecer uma escuta ao paciente hospitalizado, pois este é um momento de ressignificação da vida, e por vezes, da morte. Sabe-se que a abordagem mais indicada para o atendimento no sistema de saúde é o atendimento de grupo dentro da terapia cognitivo-comportamental.

No presente caso clinico, o atendimento psicanalítico, adaptado ao âmbito hospitalar, que muitas vezes não fornece tempo suficiente para a escuta necessária, levantou a hipótese de a doença da paciente ser causada por ansiedade. Além de questionar: O que se pode fazer frente à negativa da paciente diante do tratamento? E a resposta encontrada foi que o melhor caminho é o respeito à subjetividade, a liberdade, aos valores e as crenças do sujeito. Na medida em que a paciente se fortalecia psiquicamente, também se revigorava fisicamente. No caso estudado, a paciente negava o tratamento devido as suas questões religiosas, assinando um termo de compromisso. Ao se sentir respeitada pela equipe médica, pode expressar seu medo de morrer. Ao perceber o apoio recebido, a paciente expressava que queria viver. Indo contra as expectativas do risco de morte, recuperou-se, mesmo sem a transfusão, e recebeu alta. Na escuta psicanalítica não houve a intenção de suprimir os sintomas, mas deu à paciente a oportunidade de refletir sobre sua enfermidade e as consequências de suas decisões. A escuta possibilitou a ressignificação da aceitação da morte pelo desejo da vida.

Tem-se dado atenção aos fatores psicológicos que influenciam a não adesão ao tratamento. É importante avaliar o contexto social do indivíduo e seus recursos psíquicos para enfrentamento da doença. Deve-se sempre atentar ao que é do paciente, já que no presente caso a demanda religiosa vinha da irmã e da pressão familiar.  Levanta-se a hipótese que, quando o paciente nega o tratamento, o aparelho psíquico não seria forte o suficiente para enfrentar a ameaça a existência. Os procedimentos clínicos e a rotina de exames são angustiantes ao paciente, pois alertam de um perigo, de uma ameaça de destruição. O não querer do paciente deixa a medicina em posição de impotência, o que gera revolta, desaprovação, raiva e indignação da equipe de saúde devido a sua limitação diante da questão da morte. O trabalho psicológico também busca acolher a angustia da equipe de profissionais na compreensão de o paciente ser um sujeito além de seu corpo físico. A negativa ao tratamento, por parte do paciente, mexe com as questões dos profissionais que estão atendendo, gerando sentimentos de impotência e frustração.  Muitas vezes, a pressão médica ou a falta de comunicação faz com que o paciente entre em um tratamento que serve apenas para que a equipe fique com a consciência tranqüila de que fez todo o possível, sem questionar ao paciente sua vontade. Muitas vezes o paciente fica passivo em relação ao saber medico, sem questionar. Monteiro et. al. (2017) critica os tratamentos invasivos em pacientes sem possibilidade de recuperação, o que transforma o processo de morte em algo lento e doloroso.

 

Salvar e proteger a vida representa o objetivo clássico da medicina. Os demais objetivos da medicina são a promoção e a manutenção da saúde, bem como o alivio da dor e sofrimento. Silva (2018) discorre sobre o principio paternalista médico, encontrado na história da medicina, principalmente nos Estados Unidos. Ocorre quando o médico, com intenção de beneficiar o paciente, decidindo o que era melhor para ele e sem considerar seu consentimento, omitia informações e utilizava da coerção, com finalidade de não causar ao paciente sofrimento psicológico.  Entretanto se discutia que, supondo saber o que era melhor para o paciente, os médicos tomavam decisões, sem considerar a vontade daqueles. Foi muito praticado até meados de 1914, quando a lei entendeu que a intervenção sem o consentimento do paciente ou e de seus familiares consistia em uma violação ao direito de autonomia do indivíduo. O direito de autonomia do indivíduo, ainda de acordo com Silva (2018), é o direito do paciente de decidir, de forma autônoma, sobre sua saúde, tratamento e vida. O princípio da autonomia do individuo consiste na capacidade de escolha, avaliando as possibilidades sem quaisquer restrições internas ou externas, sendo a capacidade que o indivíduo possui de fazer uma escolha e agir de acordo com ela. É como princípio informador do agir médico, a autonomia aponta para o direito de autodeterminação do paciente, ao reconhecer e privilegiar sua vontade.

Angerami-Camon (1997) coloca que exatamente pelo sentimento de impotência diante da morte, os médicos, muitas vezes, tendem a transmitir ao psicólogo a responsabilidade de lidar com ela dentro do ambiente hospitalar. Aonde o objetivo principal do psicólogo hospitalar seria minimizar o sofrimento decorrente da hospitalização. Assim como as angustias emocionais em si, que carregam, muito nitidamente, a possibilidade da morte.

No âmbito hospitalar, o enfoque é no paciente hospitalizado, seu adoecimento e tratamento. Aonde, com a abordagem psicanalítica, conseguiu-se a compreensão do não dito, ou seja, a própria impotência do paciente em relação a sua finitude. O objetivo da medicina é o corpo e a remissão do sintoma físico, enquanto a psicologia está atenta ao sujeito e sua relação com o sintoma e situação atual, tendo atenção ao que é subjetivo. O paciente vai ao hospital querendo tratar sua dor, sua doença física. Neste momento e neste ambiente, seu psiquismo não está em foco.

Faz parte do trabalho do psicólogo estimular a adesão ao tratamento, a fim de prevenir recaídas e diminuição da qualidade de vida. Coloca-se que o paciente deve obedecer às recomendações dos profissionais de saúde e que seu comportamento deve coincidir com os conselhos e indicações médicas. Entretanto o paciente tem autonomia para escolher seguir ou não o tratamento, mas o profissional não tem responsabilidade sobre as consequências dessa decisão (Reiners et. al., 2008).

Dosse et. al. (2009) define que a adesão ao tratamento é caracterizada quando o comportamento do individuo coincide com um conselho médico ou de saúde, em relação ao hábito de usar medicamentos, alterar o estilo de vida, realizar o tratamento, comparecer às consultas médicas, etc. Reiners et. al. (2008) aponta que tem sido conferida ao paciente a maior carga de responsabilidade pela adesão ou não ao tratamento. Ainda, expõem a dificuldade psicológica de lidar com a doença como uma causa de não adesão.

Um pensamento bastante polemico sobre a liberdade de viver e de morrer do sujeito diz respeito a psicologia humanista existencial. Segundo Cruz (2005) no Existencialismo, o ser humano é um ser essencialmente livre e, sendo assim, é responsável por suas escolhas, que estão inclusas em um universo de possibilidades. Dentro desta abordagem filosófica considera-se que diante da possibilidade da morte, o individuo tem duas escolhas: viver ou morrer. O ser humano não é realmente livre, é impedido a todo o momento de escolher morrer, por assim dizer. A ética do profissional da saúde preconiza a manutenção da vida, ainda que para tanto, em algumas doenças, mais graves que no presente caso clinico, o paciente precise ficar ligado à maquinas e fazer tratamentos severos, perdendo sua liberdade e subjetividade, prendendo-se ao sistema, diminuindo sua qualidade de vida, na esperança de recuperá-la futuramente. São raros os que escolhem não fazer o tratamento.

Acredita-se que, após compreender o paciente como ser subjetivo, com seus motivos, liberdade e responsabilidade por suas decisões, e que o próprio paciente se compreenda através de seu autoconhecimento, deve ser livre para fazer sua escolha, ainda que esta seja a de não adesão ao tratamento que pode estender sua vida, mas, por vezes, vivendo o pouco que lhe resta, da melhor forma. Em lugar de buscar um tratamento com poucas chances de melhora, pensando em sua família, por exemplo, aceitar seu momento e aproveitar sua família no presente. Cruz (2005) ainda questiona se “Seria absurdo considerar que, para alguns pacientes, como, por exemplo, o que já estão fora de possibilidades terapêuticas, a morte pode ser entendida como uma espécie de cura?” (p. 22) Kovács (2003) também questiona: “Os profissionais de saúde, que têm o dever de cuidar das necessidades dos pacientes, podem atender um pedido para morrer?” (p.116) ou “Podem ser interrompidos tratamentos que têm como objetivo apenas o prolongamento da vida, sem garantia da qualidade da mesma?” (p.117)

De acordo com Kovács (2003) a morte é vista como tabu, algo que não deve ser discutido. Por outro lado, houve um grande desenvolvimento da medicina que permitiu a cura de diversas doenças e um prolongamento da vida. Entretanto, este desenvolvimento pode gerar uma dificuldade quando se trata de salvar uma vida, buscar uma cura, com esforços hercúleos, aonde a morte já se encontra presente.

“Esta atitude de tentar preservar a vida a todo custo é responsável por um dos maiores temores do ser humano na atualidade, que é o de ter a sua vida mantida às custas de muito sofrimento, solitário numa UTI, ou quarto de hospital, tendo por companhia apenas tubos e máquinas.” (Kovács, 2003, p.116)

  

REFERÊNCIAS:

Angerami-Camon, V.A. Psicologia Hospitalar-Teoria e Prática. São Paulo, Pioneira, 1997.

Cruz, T. F. S. (2005).PSICOLOGIA HOSPITALAR E EUTANÁSIA. Rev. SBPH v.8 n.2 Rio de Janeiro dez. 2005. Disponpivel em: <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1516-08582005000200003> Acesso em: 20 de Setembro de 2018.

Dosse, C; Bernardi, C; Vilela-Martin, J. F; Andrade, C. M. C. (2009). Fatores associados à não adesão dos pacientes ao tratamento de hipertensão arterial. Revista Latino-Americana de Enfermagem, vol. 17, núm. 2, abril, 2009. Universidade de São Paulo. Disponível em: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=281421907010> Acesso em: 20 de Setembro de 2018.

Figueiredo, M. A. D. (2009). A psicanálise no hospital geral: possibilidades e impossibilidades. Revista Virtual de Psicologia Hospitalar e da Saúde. Belo Horizonte, 4(8).

Kovács, M. J.  (2003). Bioética nas questões da vida e da morte. Psicologia USP, São Paulo, v.14, n.2, p.115-67. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/pusp/v14n2/a08v14n2.pdf> Acesso em: 20 de Setembro de 2018.

Monteiro, M. C; Magalhães, A. S; & Machado, R. N. (2017). A Morte em Cena na UTI: A Família Diante da Terminalidade. Temas em Psicologia – Setembro 2017, Vol. 25, nº 3, 1285-1299

Reiner, A. A. O; Azevedo, R. C. S; Vieira, M. A. Arruda, A. L. G. (2008). Produção bibliográfica sobre adesão/não-adesão de pessoas ao tratamento de saúde. Ciência & Saúde Coletiva, 13(Sup 2):2299-2306, 2008. Disponível em: <https://www.scielosp.org/pdf/csc/2008.v13suppl2/2299-2306> Acesso em: 20 de Setembro de 2018.

Silva, G. B. (2008). Bioética e biodireito e o direito de morrer com dignidade.

 


 

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